O silêncio da memória em Nossa Senhora do Socorro
O dicionário Online de português classifica a memória como a “faculdade de reter ideias, sensações, impressões, adquiridas anteriormente ou efeito da faculdade de lembrar; lembrança: não tenho memória disso”. Para o espírito humano, a memória é essencial para a sobrevivência. É a partir dela que recordamos quem somos, de onde viemos e qual a nossa verdadeira essência. É nela que encontramos a real história de nossas vidas. Mas e quando essa memória não está presente em nossas vidas? Viveremos sem experimentar dela? Esse é o caso de Nossa Senhora do Socorro, município do estado de Sergipe.
Socorro, como é normalmente conhecida, a cerca de 13 km de distância da capital de Sergipe, Aracaju, começou a se desenvolver no estado a partir do século XVI, durante o processo de colonização no estado. Assim como a maioria dos municípios brasileiros, a sua criação possui forte ligação com a Igreja Católica. Em 25 de setembro de 1718, uma capela, nomeada de Nossa Senhora do Socorro do Tomar em Cotinguiba foi elevada à freguesia. Hoje em dia, essa capela é a conhecida Igreja Matriz de Nossa Senhora do Socorro, que não possui documentação adequada falando sobre a sua construção, há apenas uma inscrição na sacristia com a data.
No ano de 1832, com a criação da Vila de Laranjeiras, o território da freguesia de Nossa Senhora do Socorro da Cotinguiba, passou a fazer parte da nova vila Em 19 de fevereiro de 1835, Nossa Senhora do Socorro se emancipou, tornando-se uma vila independente. Desde então, o município luta pela autonomia. Com isso, a criação de Aracaju como capital do Estado trouxe impactos negativos para a cidade de Socorro, como por exemplo, a perda de seu território. A cidade recuperou parte de sua autonomia em 7 de julho de 1864, com a Resolução Provincial n.701, que criou o distrito de Nossa Senhora do Socorro da Cotinguiba.
É visível que Nossa Senhora do Socorro possui um passado e uma história que carrega um peso. Histórias que deveriam ser contadas se perdem nas fissuras do asfalto, enquanto o legado de seus habitantes aguarda, ansiosos, por um olhar atento que as resgate. Assim, a urgência de preservar essa rica tapeçaria de vivências se torna um chamado à ação, um convite para que todos nós, habitantes e visitantes, façamos parte da construção de uma narrativa que não se apague, mas esteja em cada esquina.
Memória Perdida
Ao chegar no centro do município, é possível observar o apagamento histórico sofrido no centro de Socorro. Onde poderiam existir casarões antigos sobraram poucos monumentos históricos preservados, dentre eles, a Igreja Matriz da cidade, e uma estátua de que nem os moradores locais sabem a quem homenageia. Os populares, que encontramos e conversamos, não possuem registros da memória do município, e consequentemente, não existe a preservação da paisagem cultural da cidade.
Para compreender a importância da preservação da memória socorrense primeiro é necessário explicar alguns conceitos importantes: o que é Paisagem Cultural e o que é Patrimônio Histórico. Segundo o dicionário Iphan de patrimônio cultural, a paisagem cultural seria um novo conceito de conservação do patrimônio histórico, que une ambas as esferas de preservação: a nacional e a internacional. Foi incorporada no Brasil pela portaria no. 127 de 2009, do IPHAN.
Os conceitos incluem a relação entre a sociedade e os patrimônios históricos, unindo-os em uma única categoria, que em tese deveria facilitar sua preservação, compondo um conjunto vivo e dinâmico. A paisagem cultural também é mencionada e protegida pela Constituição Federal de 1988, e faz parte do território nacional, que “Igualmente visa estabelecer uma rede de proteção que envolve o poder público e a sociedade”, criando uma comunicação entre o estado e a população, para conservar o patrimônio.
Portanto, o Centro Histórico de Socorro é uma paisagem cultural para aquela população. Por esse motivo, a preservação do pouquíssimo patrimônio histórico do município deve ser reivindicada.
Segundo a historiadora Izaura Ramos, o município faz parte de uma vasta gama de cidades sergipanas que perderam seu centro histórico, ou que estão sofrendo com um apagamento gradual. Ou seja: “Nós temos municípios em que o único patrimônio é a igreja, que é um patrimônio religioso preservado pela arquidiocese”, afirma. No centro de Socorro é possível observar que todos os prédios foram modificados, fato que é comprovado quando olhamos as fotos antigas.
Detalhes da igreja matriz de Socorro( Foto: Rebeca Marques)
Detalhes da igreja matriz de Socorro( Foto: Rebeca Marques)
Desgaste dentro da Matriz( Foto: Rebeca Marques)
Desgaste dentro da Matriz( Foto: Rebeca Marques)
Acervo tombado da Igreja(Foto: Rebeca marques)
Acervo tombado da Igreja(Foto: Rebeca marques)
Luz que representa a presença de Deus( Foto: Rebeca Marques)
Luz que representa a presença de Deus( Foto: Rebeca Marques)
Caminhando pelo centro do município, o processo de apagamento em busca do “progresso” é notável, como, por exemplo, a Matriz que destoa do seu entorno. Sendo o único prédio tombado do município, ele não pode sofrer alterações, nem externas e nem internas, já que seu acervo também é tombado. A Lei Nacional de Tombamento, Decreto-Lei n.º 25, de 30 de novembro de 1937, garante a preservação de patrimônio histórico em âmbito nacional, ou estadual.
No centro da cidade, próximo à Matriz, é possível encontrar uma, das duas bibliotecas que existem em Socorro. Este teoricamente seria o lugar onde seria possível encontrar as memórias do município, porém com a estrutura precária, só é possível encontrar apostilas desgastadas que repetem a pouca informação que é possível encontrar na internet.
O prédio consiste apenas em uma sala apertada e abarrotada de livros empilhados por todos os cantos, as estantes já estão enferrujadas e bagunçadas, e há muito já perderam a organização por sobrenome do autor. Os documentos relacionados à fundação ou sobre o passado, estão agrupados em uma pequena pasta rosa desgastada, que continha apenas o hino do município e informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, que não abrange nem o necessário da memória da cidade.
Apesar de ter uma prateleira para os autores socorrenses, ela encontra-se vazia e empoeirada, retratando o descaso do município até com seus filhos celebres, que poderiam resguardar a memória da cidade.
Além da biblioteca, o Arquivo Público Municipal, é outro prédio que fica escondida no Centro Histórico, espremido entre o comércio local, na via de entrada da cidade. É um salão de pequeno porte, onde os documentos são depositados em um ambiente sem a devida climatização.
Para a historiadora Izaura Ramos, o papel da sociedade em fiscalizar o que o poder público está fazendo para preservar a memória do município é fundamental: “Quando se preserva um patrimônio histórico está se preservando a memória de um povo.”
“Quando se preserva um patrimônio histórico está se preservando a memória de um povo.”
A única biblioteca no centro ( Foto: Magno Monte)
A única biblioteca no centro ( Foto: Magno Monte)
Parte do hino do município ( Foto: Magno Monte)
Parte do hino do município ( Foto: Magno Monte)
Situação do Arquivo publico do município ( Foto: Rebeca Marques)
Situação do Arquivo publico do município ( Foto: Rebeca Marques)
apostilas sobre a cidade ( Foto: Magno Monte)
apostilas sobre a cidade ( Foto: Magno Monte)
Morador da cidade há cerca de 30 anos, Elicelmo Zuzarte destaca que os governantes não possuem uma preocupação em preservar a memória da cidade. “Socorro não tem uma secretaria [de cultura], embora exista uma secretaria com nome de Secretaria de Cultura, mas ela não tem essa preocupação de manter essa memória viva”, relata.
Para ele, o governo município não se preocupa em reservar, ou compreender a necessidade de resguardar o patrimônio histórico da cidade. “Quando o gestor faz questão de manter essa memória viva, ele leva para outros lugares como a sala de aula. Fazendo questão de manter viva a história do município”, reforça.
Por fim, Elicelmo acredita que o meio de eternizar a memória da história socorrense seria por meio dos jovens. “Eles são a porta para que o que sobrou desta memória não seja perdida nos próximos anos”, conclui.
As complicações do abandono
Nossa Senhora do Socorro, ao tanto que cresceu e se desenvolveu, também esqueceu das suas origens e da sua memória, condensando uma população a viver longe daquilo que é direito de todo cidadão.
Em abril de 2017, o então estudante do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Sergipe, Vinícius Silva Rodrigues, realizou o seu trabalho de conclusão de curso abordando as diversas modificações no território socorrense. O projeto, que teve como título “As transformações recentes no espaço urbano de Nossa Senhora do Socorro” também explorou a história do Centro Histórico da cidade durante os séculos.
Em seu trabalho, Vinícius cita que até a década de 1970 o Centro de Socorro preservava suas edificações e fachadas históricas, mas que com a criação das rodovias e dos novos bairros, o Centro passou a ser abandonado e desconsiderado: “Com o abandono do Centro, os casarões não foram tombados e acabaram sendo modificados e até demolidos perdendo assim a essência colonial do centro que existia na década de 70”, afirma.
A grande característica do Centro de Socorro hoje, percebida não só pelos turistas e visitantes, mas também pelos moradores locais, é que ele não se parece em nada a cidade em desenvolvimento e que já conta com um shopping, grandes avenidas e grandes redes de comércio, como é visto no Complexo Taiçoca. Cidades como Aracaju, Laranjeiras, São Cristóvão, Rio de Janeiro e Belém preservaram ou mesclaram seus prédios históricos com novas construções, mas Nossa Senhora de Socorro não seguiu nenhum dos dois caminhos.
Vinícius explica que o crescimento de Socorro foi encabeçado pelo Governo Estadual e que pelo centro da cidade ficar longe das rodovias, não se desenvolveu com o resto do município: “Boa parte do abandono do Centro de Socorro deu-se pela questão da interferência do estado, que preferiu o desenvolvimento dos Complexos da Taiçoca através de fábricas e comércios, deixando assim aquele centro abandonado.”
“Boa parte do abandono do Centro de Socorro deu-se pela questão da interferência do estado, que preferiu o desenvolvimento dos Complexos da Taiçoca através de fábricas e comércios, deixando assim aquele centro abandonado.”
a cidade de socorro vista da prefeitura( Foto: Rebecca Marques)
a cidade de socorro vista da prefeitura( Foto: Rebecca Marques)
O centro silencioso do município( foto: Rebeca Marques)
O centro silencioso do município( foto: Rebeca Marques)
Obra com símbolos do município( Foto: Bárbara Ramos)
Obra com símbolos do município( Foto: Bárbara Ramos)
Brasão do município ao lado da câmara de vereadores(Foto: Rebecca Marques)
Brasão do município ao lado da câmara de vereadores(Foto: Rebecca Marques)
Apesar disso, ele afirma que Nossa Senhora do Socorro mantém uma cultura que poucas cidades em desenvolvimento e até mesmo capitais mantiveram em relação ao seu Centro Histórico: “Socorro se desenvolveu fortemente, porém diferente de outras cidades como Aracaju, Recife, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, o poder público de Socorro continua com a sede no Centro Histórico. Prefeito, vice-prefeito, vereadores a até mesmo alguns secretários transitam ali pelas vias do Centro Histórico porque os seus gabinetes não saíram de lá.”
Quanto a opinião dos moradores sobre a preservação da memória do centro histórico, Vinícius conta que: “a própria população não tem noção disso porque nunca foi feita uma política pública em benefício dessa memória, nem nas escolas nem através de festivais. São Cristóvão por exemplo, faz o Festival de Artes no seu Centro Histórico, isso traz demanda, traz a população pro centro, e durante o tempo que eu morei em Socorro eu não notei nenhum empreendimento por parte do poder público local para a preservação do centro como ocorre em São Cristóvão.”
O município de Nossa Senhora do Socorro é hoje um importante polo industrial, comercial e populacional do estado de Sergipe, que deve chegar aos 200 mil habitantes na próxima década. Porém, mesmo com tanta relevância na relação com a capital e com o restante do estado, a memória de Socorro é resumida hoje só a Igreja Matriz tombada. Outros prédios não tiveram a chance de ter suas histórias contadas e suas estruturas preservadas. Socorro é hoje um presente que olha pro futuro, mas que peca constantemente em não preservar o passado.